Eu sempre tento imaginar nosso coração como um grande armário, abarrotado de gavetas, umas grandes, outras minúsculas – feito porta joia de vó – algumas com chave e outras blindadas, e somos nós, sempre, quem escolhemos como organizar e onde guardar cada pessoa/coisa/sentimento/história que vivemos.
Algumas são para serem deixadas à mão, ao alcance sempre, feito os antigos e inseparáveis dicionários dos jornalistas, feito o livrinho do plano de saúde, feito as enciclopédias que se amontoam nos consultórios médicos. Relê-las é uma ‘garantia’ de aprendizado, uma precaução quanto aos mesmos erros, um quase guia contra reincidências. É bom, sim, lembrar o que fizemos de errado, ou o que nos fizeram. Martírio? Não, aprendizado e, como para os repetentes, que são obrigados a rever todo um conteúdo mesmo que tenha vacilado apenas em matemática. Preços são feitos pra que a gente pague. E geralmente quem os define somos nós.
Outras, ficam nestes compartimentos blindados, de onde não saem nem sob atentado. São as memórias da casa da vó, as histórias do vô, o cheirinho da comida do vizinho, a sensação do vento no rosto no primeiro passeio de bicicleta, a barriga congelando no primeiro beijo – mesmo que você sequer lembre o nome del* – a primeira paixão desmedida, os afetos verdadeiros, etc. Não há porque se desfazer deles, são feito um tesouro. E são, na verdade, as únicas coisas que possuímos de fato: nossas lembranças.
Também existem aquelas que foram feitas pra virar aviãozinho de papel, origami de helicóptero, pétala de dente de leão e seguirem, por aí, com o vento. Porém, algumas delas, nosso capricho teimoso insiste em guardar nas gavetas com chave, aquelas que nós temos o poder de abrir e fechar quando bem entendermos. Podem ser bonitas, podem ter sido fascinantes, tanto quanto dolorosas, impactantes, mas são todas superlativas, enormes, nossas, não podem ser do mundo. A gente tranca e não percebe que cada vez que a gaveta fecha, a gente prende o dedo. E dói. A gente engole o choro e insiste: mas é meu/minha, eu escrevi. Escreveu, mas as letras já estão borradas de tantas lágrimas ou de tanto suor pra manter aquilo ali, com você, durante o tempo que você acredita ser ‘sempre’.
Se eu pudesse lhes dar um conselho: façam uma faxina. Abram essas gavetas e tirem todas essas belas histórias imaginárias. Imaginárias? Não, são reais, eu as vivi. Sim, mas se elas ainda existissem não estariam na gaveta, não é mesmo? :)
Roberta Profice é colunista do We Love e escreve aqui às sextas. Leia outros textos dela aqui.
Roberta Profice
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